Pelo direito de acreditar

11jan12

 

Uma recente discussão de boteco com amigos sobre o fundamento lógico das crenças (na verdade, de uma crença) me levou a uma conclusão tardia, embora óbvia. Efetivamente, não há espaço para Deus em qualquer perspectiva racional.

Não existe evidência científica da existência divina, da vida após a morte ou de eventos extraordinários assim definidos como milagres, como tampouco há fundamentos concretos capazes de justificar a influência dos astros sobre o comportamento das pessoas ou algo que o valha.

Contudo, há inegavelmente muitas coisas sobre as quais o homem sabe assustadoramente pouco ou nada. Uma esfera de conhecimento à qual o método científico não tem acesso e sobre a qual a sociologia é absolutamente ignorante. E uma insaciável necessidade de transcender que você pode chamar de fé.

De fato, esse é um terreno fértil para manipulações, construção de projetos de poder e sistemas de controle, opressões cruéis, intolerância e conflito, corrupção, abuso e charlatanismos de toda ordem – uns, caricaturalmente escancarados, outros sutis e, por isso, mais perigosos. Podemos falar sobre tudo isso depois.

Mas nem o mais cético e calejado dos indivíduos pode negar. No quebra-cabeça cósmico da existência, há uma peça crucial faltando. Uma fronteira desconhecida e silenciosa, delimitada pelos limites das ciências naturais e, portanto, inacessível para elas.

Daí por que sou muito mais simpático aos agnósticos, que admitem haver, dos que aos ateus, para os quais nada há além das dimensões conhecidas e devidamente exploradas. Em termos práticos, é impossível atestar a inexistência do que não se conhece, mesmo sendo obrigado a concordar que, neste caso, o ônus esteja com quem tenta provar o contrário.

Talvez o maior equívoco cometido pelas grandes religiões (e não foram poucos) em resposta ao humanismo tenha sido justamente tentar provar-se uma verdade absoluta.

O cristianismo, em particular, vive a patrocinar esforços constrangedores no sentido de impor suas verdades supostamente históricas, seja a de que o mundo foi criado em sete dias (na verdade seis, porque no sétimo o Senhor descansou) ou a de que Noé construiu uma arca suficientemente grande para comportar um casal de cada espécie animal durante o dilúvio.

Ao submeter-se a essa leitura literal e geométrica dos relatos, esvaziou-se de todo seu simbolismo e metáfora, sacrificou seu caráter místico e, sobretudo, perdeu a capacidade de compreender o mundo em sua própria linguagem e encontrar, mais do que respostas para as grandes perguntas, uma noção de sentido para a vida.

Por isso, sou cada vez mais tentado a acreditar que o lugar de qualquer crença é ao lado das artes, da filosofia, da poesia e suas alegorias, do que é belo, completa, encanta e assombra a alma. Sua verdade é necessariamente relativa, interna e, sobretudo, existencial. Nem mais nem menos importante do que a verdade científica, apenas pertencente a outro mundo.

Toda essa digressão para dizer aos amigos da referida discussão de boteco: não, não há nenhum fundamento lógico. Mas deveria haver?



8 Responses to “Pelo direito de acreditar”

  1. Ainda que não concorde totalmente sua digressão de boteco é bem fundamentada e vou “linká-la” no meu blog! =D

  2. 2 Douglas

    Se o Sr. não conhece evidências cientificas da vida após a morte corpórea,aconselho leitura do livro “No Invisível” de Leon Denis.
    Paz!

  3. 3 tsendin

    A ciência não prova – ainda – a existência de Deus e de vida após a morte. Talvez nunca prove. Talvez prove um dia. Afinal, no começo, a “ciência” também não provava a existência de outros planetas. E até hoje não entende porque as baleias encalham, ou o que causa a exaqueca. Dai fica para cada um a liberdade de acreditar, ou não, por opção própria. Opção que os outros deviam respeitar. Se um respeitasse o outro, se o ateu respeitasse o crédulo, o evangélico o espírita, o agóstico o católico, talvez as guerras santas não existissem mais…

  4. 4 Silvia Paladino

    Respeito sua visão, meu amigo. Só tem uma coisa que não faz sentido. Por que o mistério precisa ser divino? Mania do homem de atribuir aquilo que não compreende a um Deus todo poderoso e criador. O universo é complexo, realmente, mas somos feitos da mesma matéria – eu, você e todos os planetas. A existência de uma conexão absoluta entre tudo isso não é uma questão de fé, mas de física. Estão aí os grandes pensadores da física quântica para quebrar o pensamento linear e cartesiano que nos condicionou até hoje. A astrologia (o objeto da nossa discussão no bar) não é uma leitura mística da vida. Subjetiva, talvez. Mas a própria física já começa a reconhecer que não há exatidão na vida. De qualquer forma, o estudo dos astros e a sua influência sobre nós é apenas um resgate do que as culturas mais antigas do mundo já sabiam: todos os fenômenos – compreendidos ou não pelo homem – têm fundamento naturalista. Crença e religião não têm nada a ver com isso. =)

  5. Rapaz, concordo com você!

    Os cientistas já descobriram que nosso cérebro tem um pequeno “defeito” de fabricação.

    O cerebro humano foi programado a dar sempre um sentido as coisas, ou seja, sabe aquele texto onde tá faltando um sílaba e automaticamente sem perceber completamos a palavra…pois é assim que funcionamos, em razão disso, todas as religiões e crenças foram criadas pela humanidade.

    Nos primórdios, se chovia, Deus chuva mandou, e nunca simplesmente chovia porque tinha mesmo que chover….rs!

    O ser humano é fatalista, tem que acreditar em algo, pois, viver a realidade é difícil, trabalhar, pagar contas, etc, temos que ter ajuda divina… esse vazio ateu é incompreensível para a maioria de nós.

    Melhor deixar assim, até porque farsa por farsa, tem gente que acredita no Che Guevara, isso sim é crença!

    Tem gente que diz que ama o comunismo e tem a foto do velho Che no Iphone!

    Enfim, essa também é uma boa conversa de boteco!

    Abraços,

    Mauro Brandão

  6. Ótimo o texto. Concordo qdo vc coloca a religião ao lado das artes. E, assim como as artes, está sujeita às críticas e contestações. Qualquer coisa que se coloque como incontestável é opressora ou instrumento de opressão. E, na minha forma de ver, todas as religiões se colocam como verdades absolutas. Penso ainda que todas elas se propõem a oferecer uma explicação “racional” para o mundo. Pode não ser a racionalidade científica, mas tentam dar significado e sentido ao desconhecido. Talvez, a maior parte dos ateus esteja apenas satisfeita em admitir isso como ignorância. Não acho que ignore que existam fronteiras inexploradas do conhecimento, somente não querem fechar as lacunas com uma explicação genérica e definitiva. Apenas não creem (e não há vazio nisso). Outro aspecto que vejo de forma diferente é a posição do agnóstico. De modo geral, não está preocupado com “a peça que está faltando”. Simplesmente não se importa com a existência ou não de um deus, assim como tem gente que não quer saber de arte. Por fim, defendo fortemente o seu direito de acreditar, também o meu direito de não acreditar e, acima de tudo, o direito das pessoas discutirem isso abertamente se assim elas quiserem e se o assunto tiver alguma relevância pra elas. Saudações!

  7. 7 Kazé

    Nada é verdadeiro. Tudo é permitido!


  1. 1 Vale a leitura. | Oficina do Pinduca

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